segunda-feira, 1 de junho de 2009

De Acordo Com o Acordo


Caio Pedra e Janaina Pimenta



Dentre as inúmeras riquezas culturais e naturais de que se podem orgulhar os brasileiros, inquestionável destaque possui a Língua Portuguesa aqui consolidada. Foram necessários muitos séculos e influência lingüística de vários povos para a composição do resultado que hoje conhecemos. Da simbiose de línguas européias – notadamente o Português de Portugal – e dialetos africanos e indígenas, teve origem um idioma tão rico que pouco conhecido pela maioria de seus falantes. São incontáveis os recursos lingüísticos de que podemos desfrutar na construção de um texto. Entre mesóclises, elipses e silepses, a Língua Portuguesa mostra-se mais bela quanto mais dela se conhece. Prevê diferentes colocações pronominais, infinitos sinônimos, além das mais diversas figuras de linguagem. Engana-se quem a vê como exigente ou complicada, nossa língua é generosa: oferece alternativas e é dinâmica e moderna, sem perder o brilho e a elegância de seu eruditismo.

Com o argumento da defesa da unidade essencial da língua Portuguesa em busca de seu prestígio internacional, foi elaborado, em 1990, um projeto de texto de ortografia unificada do idioma. Assinado, desde então, pela Academia das Ciências de Lisboa, Academia Brasileira de Letras e delegações de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, com adesão de observadores da Galiza, o documento não produziu efeitos no Brasil até janeiro de 2009, já que só foi promulgado através do Decreto número 6.583, de setembro de 2008. A princípio, somente 0,8% das palavras do nosso vocabulário sofrerão alterações. Parece pouco – afinal, em Portugal, por exemplo, esse índice chega a 2% –, mas não é. A triste realidade de que dominamos apenas pequena parcela do linguajar que prevêem, por exemplo, os nossos dicionários tranqüiliza a maioria das pessoas. O fato, entretanto, é que as mudanças não se limitam a termos em desuso ou palavras pouco utilizadas. Pelo contrário, elas atingirão, inclusive, algumas das palavras que utilizamos com maior freqüência.

O objetivo, inicialmente grandioso e arrojado, parece inconsistente ao considerarmos a heterogeneidade da língua mesmo dentro dos limites fronteiriços do nosso país. A grande extensão territorial do Brasil e suas diferenças culturais internas resultam em regionalismos e impedem a uniformidade. O próprio acordo admite essas variações. Se nem aqui o Português é unificado, o que dizer entre nações de características tão diversas?

Feliz ou infelizmente, as mudanças serão rapidamente assimiladas pela população, pois a maior parte dela não tinha mesmo conhecimento pleno das regras antigas e, portanto, não se surpreenderá com as novas. Quantos açougues precisarão riscar o trema de suas ofertas de “lingüiça”? E quantas donas de casa realmente perceberão a diferença e a atribuirão ao novo acordo? Para muitos, o sinal de diérese (acredite, era esse o nome do trema) nunca foi verdadeiramente essencial para o cumprimento de sua função de diferenciação fonética. Em contrapartida, medidas como a extinção do acento diferencial ainda causarão muitos transtornos àqueles que dominavam seu emprego, que serão os principais atingidos pela reforma.

Os professores terão que se adaptar, assim como os livros didáticos. Os jovens em idade escolar poderão “esquecer” parte do que estudaram. Mas a maior responsabilidade talvez fique a cargo das crianças em alfabetização, que precisarão diferenciar desde cedo a escrita e a pronúncia, já que a primeira não mais determinará a segunda. Apenas através da memorização, aprenderão, por exemplo, que, foneticamente, “teia” e “ideia” têm muito menos em comum do que aparentam. Além disso, estarão expostas ao constante contato com a norma antiga, presente na esmagadora maioria dos livros, revistas e textos impressos atualmente.

O próprio texto do acordo é, de certa forma, excludente, pois, escrito em irretocável norma culta, apresenta, em vários momentos, passagens de difícil compreensão, dada a sofisticação vocabular. O mais surpreendente, entretanto, é que seus trechos mais interessantes começam com “continuam” ou “permanecem”, e dizem respeito a algumas regras a serem mantidas, comprovando a vastidão da nossa língua ou a nossa ignorância em relação a ela.

É compreensível a relevância da proposta. A intenção de fortalecer internacionalmente a Língua Portuguesa insere-se em um contexto de busca por maior aproximação entre os países signatários do acordo. Porém prejudica o aprendizado do idioma ao modificar a grafia mantendo a sonoridade. É difícil propor mudanças a algo tão completo e bem estruturado quanto a Língua Portuguesa, pois nenhuma alteração ortográfica poderia ser compatível à sua grandiosidade. O que aconteceu, então, foi quase um empobrecimento, modificações esparsas que não representam nenhum acréscimo. Já que era para mexer então, para que manter a crase, que tanto complica a vida de quem escreve? E quem precisa do H inicial?



Publicado no jornal Voz Acadêmica, da Faculdade de Direito da UFMG, em abril último (página 7).

2 comentários:

Caio disse...

amo tanto!

Cadê o Revisor? disse...

O acento grave só complica a vida de quem não entende a língua. Mas a vida desses é complicada pela pontuação, pela ortografia, por toda a sintaxe, pela morfologia e até pela semântica.
Se é para nivelar por baixo, que cada um escreva então como quer e que se estabeleça logo o caos linguístico.

Abraço,

Pablo
http://cadeorevisor.wordpress.com